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A fonoaudiologia na construção da subjetividade

Breve histórico da noção de sintoma no campo fonoaudiológico

 

Conforme destaca Cunha (2001), a teoria que sustenta a prática clínica fonoaudiológica fragmenta-se em diversos campos de conhecimento - dando origem ao que ela denomina “clínica de empréstimos”- e se benefeciaria muito caso contemplasse a noção de sujeito psíquico através de um dialógo com a psicanálise.

 

Segundo a autora, no primeiro momento, o modelo teórico adotado foi o de uma medicina que considerava a patologia como uma variação quantitativa de um estado patológico. Sob esse ponto de vista, o sintoma é concebido como um dado observável enquanto fenômeno particular, individual, “mas interpretado como uma alteração indesejável em relação a leis universais, mensuráveis e invariáveis” (Cunha, 2001, p. 17). Após o impacto que a tese de Canguilhem (1990) sobre o normal e o patológico provocou no discurso fonoaudiológico, a rígida influência positivista que a Medicina exerceu sobre a clínica fonoaudiológica passou a ser severamente criticada, por culminar em uma valorização da doença em detrimento do doente. Essa crítica, aliás, chegou a repercutir no próprio campo da Medicina. Ao propor que a noção de patologia baseada em referenciais mecanicistas que concebem o organismo como regido por um sistema de leis físicas regulares e universais seja substituída por um modelo cuja referência seria o organismo individual concebido como uma organização de propriedades que busca o equilíbrio com o meio particular no qual se insere. A tese de Canguilhem dá ensejo à inclusão do doente na doença.

 

De acordo com Birman (1980), a inclusão do relato do paciente no método diagnóstico foi ressaltada após a Segunda Guerra Mundial com o movimento da Medicina Antropólogica, que passou a incluir fatores psicológicos, sociais e antropológicos na causalidade da doença. O método diagnóstico, por exemplo, deixa de ser baseado apenas nos sintomas observados pelo médico e passa a ser baseado também nos relatos verbais dos pacientes sobre seus sintomas, calcado não apenas no aspecto fenomenológico do sintoma, mas em sua causalidade. Com isso, a medicina teria se inserido em uma perspectiva multidisciplinar, na qual a abordagem da enfermidade é inseparável da abordagem do enfermo. Sendo importante lembrar que, longe de representar uma preocupação de cunho moral com o doente, trata-se de uma preocupação estritamente profissional, uma vez que se o médico leva em consideração o que o paciente diz sobre seu padecimento, não é porque adota a postura de um bom samaritano, mas porque o exercício de sua profissão o exige, dado que a elaboração do diagnóstico inclui o relato do paciente.

 

Segundo Cunha (2001), como reação a uma conceituação do patológico, que não levava em consideração a posição subjetiva do doente frente à doença e que, além do mais, era concebida como o oposto da normalidade referida ao modelo mecanicista, não dando margem à inclusão do doente na doença, nem à intersubjetividade essencial à relação terapêutica, a fonoaudiologia passou a buscar na linguística os conceitos que lhe permitiriam dar conta dos fenômenos patológicos da linguagem. Mas, novamente, a mesma questão se colocou: reduzir os sintomas da linguagem a alterações do sistema língua daria conta da singularidade do sintoma e abarcaria a subjetividade?

 

Segundo a Cunha (2001), esse modelo não seria ainda suficiente. Afinal, a linguística saussuriana, que serviu de inspiração a esse primeiro movimento da fonoaudiologia rumo à linguística, reduz a noção de línguagem às regras que regem o código da língua, dela excluindo a subjetividade. Saussure (2006), com o intuito de assegurar um objeto preciso para a ciência da linguagem, divide a linguagem em dois pólos, a língua (langue) e a fala (parole), concedendo à primeira o privilégio de ocupar o centro de interesse da linguística. A língua (langue) exclui o posicionamento do sujeito diante da linguagem, uma vez que é concebida como o pólo da linguagem responsável pelo caráter de código coletivo desta, consistindo em um padrão coletivo recebido pelo indivíduo passivamente: “Trata-se, pois, de algo que está em cada um deles [os indivíduos], embora seja comum a todos e independa da vontade dos depositários” (Saussure, 2006, p. 27). Somente a fala (parole) resguardaria o que haveria de “individual” na linguagem, ou seja, as associações singulares do indivíduo e as características fonéticas (voz, timbre, entonação) do que é dito. Opõe-se, assim, a fala, enquanto ato individual, ao caráter coletivo da língua:

 

A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência no qual convém distinguir: 1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações (Saussure, 2006, p. 22).

 

A partir da distinção entre língua e fala, Saussure considera impossível constituir um campo de saber homogêneo sobre a linguagem em sua totalidade, dada a heterogeneidade de seus constituintes. Nas palavras do autor: “Por todas essas razões, seria ilusório reunir, sob o mesmo ponto de vista, a língua e a fala. O conjunto global da linguagem é incognoscível, já que não é homogêneo, ao passo que a diferenciação e subordinação proposta esclarecem tudo” (Saussure, 2006, p. 28). A linguística, para se constituir como ciência, deverá doravante reduzir-se a uma ciência da língua. Conforme salienta Sausurre (2006):

 

Com outorgar à ciência da língua seu verdadeiro lugar no conjunto do estudo da linguagem, situamos ao mesmo tempo toda a Linguística. Todos os outros elementos da linguagem, que constituem a fala, vêm por si mesmos subordinar-se a esta primeira ciência e é graças a tal subordinação que todas as partes da linguística encontraram seu lugar natural (p. 26).

 

Ora, de acordo com Cunha (2001), até o final da década de 1970, esse modelo consolidou-se no campo fonoaudiológico através dos testes e provas de linguagem, que consistiam em tarefas linguísticas descontextualizadas e predominantemente metalinguísticas. Os sintomas patológicos da linguagem, compreendidos como déficits, eram objeto de programas terapêuticos que objetivavam sua redução/eliminação através de exercícios de normatização da língua, tais como: repetição (de fonemas, sílabas, palavras, frases, parágrafos), nomeação e identificação de objetos, formação de palavras e frases a partir de suas unidades constituintes, descrição de figuras, compreensão e/ou complementação de frases com complexidade estrutural crescente, treino do uso de regras morfológicas e sintáticas, estabelecimento de relações semânticas etc. Além de a autora criticar nesses programas terapêuticos a impossibilidade de se estabelecer uma interpretação dos sintomas, do estabelecimento de processos terapêutico singulares que não excluam a intersubjetividade e da valorização da atividade epilinguística do paciente (ou seja, sua capacidade de operar na linguagem através de seus próprios recursos discursivos), Cunha (2001) observa também um mal emprego das noções saussurianas de língua e de fala. Nas palavras da autora:

 

Explicitando: reduzir a linguagem dos clientes às suas manifestações sintomáticas equivale a buscar, na fala individual, os desvios em relação às regularidades do sistema da língua e, consequentemente, tentar eliminá-los. Logo, reduzir a linguagem ao código equivale a tomar como referência teórica um modelo que, por definição, exclui a subjetividade. Resultado: diagnósticos transformados em listagens de “erros”, para os quais não há explicações além das normativas (Cunha, 2001, p. 23).

 

Contrapondo-se à linguística formalista, a fonoaudiologia gradativamente foi se encaminhando para teorias da linguagem que buscavam sistematizar os usos da linguagem em situações concretas, vividas pelos falantes reais, tais como os trabalhos de Jakobson sobre as funções da linguagem; de Benveniste sobre a teoria da enunciação; de Searle sobre a pragmática e de Ducrot na semântica argumentativa. De acordo com a Cunha (2001), essas teorias apresentam maior afinidade com a clínica fonoaudiológica por levar em consideração a heterogeneidade e diversidade da linguagem, permitindo, assim, a revisão do conceito patológico de linguagem como mero desvio das regras e normas do código da língua. Segundo Cunha (2001), esse referencial favorece a interpretação do sintoma em detrimento de sua mera descrição.

 

Contudo, a autora destaca que essa orientação que dirigiu-se à Sociolínguistica, preocupada com os efeitos das estruturas sociais sobre a línguagem, à Pragmática, voltada para os usos efetivos da linguagem, e à teoria da enunciação, centrada na subjetividade dos interlocutores, culminou no estreitamento da relações entre fonoaudiologia e Análise do Discurso. Esta última, ao dedicar-se às condições de produção do discurso, representadas pelas formações imaginárias que o sujeito tem de si e do outro, promoveu um deslocamento das reflexões linguísticas em direção às Ciências Sociais, articulando linguagem, historicidade e ideologia. Novamente, a utilização desse modelo na clínica fonoaudiológica não abarcava a singularidade do sintoma, nem a subjetividade, embora valorizasse a dimensão intersubjetiva. Uma nova redução era operada: a redução às condições socio-históricas e ideológicas.

 

É ainda sob a via aberta pelos estudos da Sociolinguística que na década de 1980 o “interacionismo” ganhou terreno. Cunha (2001) afirma que isso permitiu uma revisão da função do terapeuta, retirando-o do lugar de observador neutro, imparcial e adestrador, colocando-o como sujeito implicado nos próprios processos de linguagem de seus clientes. É a noção de dialogia que doravante ganha destaque. Embora não mencionado pela autora, Bakhtin (2003) formula muito bem a noção de dialogia ao abordar a noção de “alternância dos sujeitos falantes” na dimensão comunicativa. Para ele, nenhum falante é senhor de sua própria fala, pois o que diz vem sempre do outro, dada a polifonia do discurso. Além do mais, o que o falante diz é sempre ressignificado pelo ouvinte, que, ao ouvir, torna-se também falante, pois dando sentido ao que ouviu, interfere na significação que o próprio falante deu inicialmente para a sua fala. No processo terapêutico, então, o terapeuta jamais será passivo, pois até mesmo o seu silencio dá sentido para o que foi dito pelo paciente (Novaes & Rudge, 2007). Nas palavras de Bakhtin:

 

Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (Bakhtin, 2003, p. 271).

 

No entanto, Cunha (2001) considera que os avanços que a noção de dialogia trouxe para o processo terapêutico são uma condição necessária para a compreensão do campo fonoaudiológico, mas não são suficientes, pois reduzem a noção de sujeito a um ser projetado em espaço e tempo exclusivamente social. Para tanto, a autora propõe que se recorra à noção de sujeito psíquico elaborada pela psicanálise:

 

Entretanto, é preciso considerar que o psiquismo imprime suas marcas nas formas da linguagem. A polifonia da fala não resulta apenas da incorporação de várias vozes externas a uma voz interna: os conflitos psíquicos operam uma cisão já na interioridade. O sujeito não é uma entidade homogênea que espelha a sua consciência nas palavras e, por extensão, não transgride as leis da conversação. Existe também uma espécie de força anárquica que pontua o discurso, e que faz com que o sujeito tanto refreie as palavras como as diga à revelia. Essa força se origina no Inconsciente, que, ao atravessar a dualidade eu-outro impondo-se como um terceiro elemento - como uma terceira voz - faz com que a Psicanálise se apresente aos estudos da linguagem (Cunha, 2001, p. 36).

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