.
Bruna Monteiro Hallak
Supervisão em psicanálise: Denise Rocha Nacif
Judith Miller foi uma filósofa francesa, nascida em 1941 na cidade de Antibes, tendo falecido aos 76 anos, em 2017, em função de uma doença degenerativa. Judith era filha do psicanalista Jacques Lacan e foi casada com Jacques Allain-Miller, nomeado pelo próprio Lacan como seu herdeiro moral e responsável pelo estabelecimento de suas obras. Embora tenha se formado como filósofa, Judith Miller dedicou-se, incansavelmente, à difusão do ensino de seu pai. Ademais, ocupou-se ativamente dos estudos freudianos, fornecendo importantes contribuições à Escola da Causa Freudiana (ECF), fundada por seu marido. Judith Miller também teve uma atuação de grande relevância como presidente do Campo Freudiano, por meio da criação do CEREDA (Centro de Estudos sobre a Criança no Discurso Analítico) e do CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança), que serão abordados mais adiante.
Em uma homenagem prestada à Judith Miller, em razão de seu falecimento, Ana Lydia Santiago (2017) destaca a preocupação da filósofa em valorizar a dimensão inventiva da experiência da psicanálise, contrária a qualquer padronização e, em defender a reconquista perpétua da própria psicanálise. Nesse sentido, o legado deixado por Judith Miller representa uma forma de resistência ao apagamento das singularidades e uma defesa da ética da psicanálise lacaniana. Cabe mencionar ainda que os seminários de Lacan fazem parte da coleção do Campo Freudiano no Brasil, que foi dirigido por Judith Miller e por Jacques Allain-Miller, sendo a Editora Zahar a responsável pela publicação dos textos de Lacan no Brasil.
Em uma edição especial da Rádio Lacan, que visa transmitir a voz da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e sua política, de orientação lacaniana, diversos psicanalistas testemunharam em homenagem à Judith Miller. Segundo o relato de Gleuza Salomon (2018), Judith Miller foi uma das responsáveis pelo intercâmbio de experiências clínicas entre os países Brasil, França e Argentina. Ana Lydia Santiago (2018), por sua vez, comenta que Judith Miller esteve sempre atenta à atualidade de cada época e enxergava a criança como um analisante que tinha direito a uma análise de verdade, assim como fizeram Rosine e Robert Lefort.
Tendo em vista a sua concepção de criança, Judith Miller convocava os analistas de crianças a permitir que elas contassem suas próprias histórias, embora normalmente cheguem ao analista levadas e faladas pelo Outro. Por isso, convidava, insistentemente, os analistas a tomarem palavra frente aos discursos que tomam as crianças como objeto e orientam os pais a condutas bastante homogeneizadas. Ademais, Judith Miller batalhou para a difusão de pesquisas, organização de eventos e publicações que incluíssem o CEREDA e o CIEN. Destacam-se o livro “Crianças falam e têm o que dizer – experiências do CIEN no Brasil” e as revistas Analítica e El niño (SANTIAGO, 2018).
O surgimento do CEREDA, uma das ações de Judith Miller como presidente do Campo Freudiano, resultou de um trabalho de cartel integrado por ela e por Jacques Allain-Miller, Éric Laurent, Rosine e Robert Lefort. A proposta defendida por eles estava baseada na inclusão da criança no discurso analítico, com o objetivo de que este fosse um espaço para estudos abertos. Assim, visava favorecer os praticantes de diversos horizontes a colocar à prova suas experiências clínicas com crianças e jovens. Desde a fundação do CEREDA, em 1983, Judith Miller impulsionou e acompanhou o movimento dessa entidade, que foi se transformando com o decorrer do tempo (SANTIAGO, 2017).
No que diz respeito ao CIEN, a proposta, que surgiu em 1996, possibilitou uma nova relação com o saber, em função de conversações com outras disciplinas implicadas no trabalho social. Por essa via, buscava-se sair da impotência, ao resgatar o saber próprio a cada disciplina, o que pressupõe a construção de um trabalho interdisciplinar. Judith Miller concebia o CIEN como uma oportunidade de renovação e formação de analistas (SANTIAGO, 2017). Segundo o manifesto que consta no site do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, (IPSM-MG), o CIEN:
Criado em 1996 por Jacques-Alain Miller, o Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN) é uma instância internacional ligada aos Institutos do Campo Freudiano, que trabalha, de forma interdisciplinar, com os profissionais concernidos, as dificuldades encontradas pelas crianças e adolescentes no laço social. Nesta instância, o foco não está colocado propriamente sobre a psicanálise e sim sobre a criança e o adolescente (UDENIO, 2015). É nesse sentido que o CIEN parte do desejo de abrir o campo de investigação da psicanálise para outros discursos e com outros discursos que têm incidência sobre a criança e os jovens (IPSM-MG, 2020).
Cabe acrescentar que a conversação é um dispositivo comumente utilizado pelos laboratórios do CIEN, com o objetivo de fazer circular a palavra para tratar dos impasses que surgem nos espaços em que crianças e adolescentes estão inseridos. Ferrari (2014) indica que a conversação é um procedimento grupal, estabelecido por Jacques Allain-Miller, no qual se debate um tema proposto, de modo que o dizer de um participante pode ressoar no outro, que também se coloca a trabalho. Nesse sentido, espera-se que algum inédito possa surgir a partir da palavra dialogada. Embora o dispositivo da conversação tenha sido cunhado por seu marido, Jacques Allain-Miller, Judith Miller também contribuiu para o estabelecimento desse método na psicanálise.
Ainda no que se refere ao CIEN, em uma entrevista concedida ao psicanalista Marcelo Veras, em 2012, Judith Miller afirma que o CIEN foi uma maneira encontrada de inventar uma modalidade que valoriza o trabalho social e que permite a cada um se dar conta de que a impotência pode ser superada a partir do momento que alguém se interessa, verdadeiramente, por cada um dos casos. Nessa mesma entrevista, Judith Miller também comenta sobre a criação de uma instituição que funcionava como uma associação de pais e amigos de autistas. Para ela, os protocolos e métodos utilizados na atualidade apagam completamente a singularidade dos casos e por isso o autismo foi o “ponto fervente” dessas iniciativas (MILLER, 2012).
Por fim, cabe ressaltar que o legado deixado por Judith Miller representa a resistência da psicanálise, frente a um cenário contemporâneo que aponta, cada vez mais, para o apagamento das singularidades e para o esgarçamento dos laços sociais. Cabe a nós, analistas, sustentar o desejo de ir na contramão desses discursos da atualidade, tomando os ensinamentos da psicanálise lacaniana como um referencial teórico-prático que preza pela escuta particularizada e não pela generalização dos sintomas, que colocam o sujeito (não somente as crianças) como objetos e produtos na contemporaneidade.
REFERÊNCIAS:
FERRARI, I.F. Relatório da pesquisa Mulheres encarceradas: laços com o crime, desenlace familiar. Belo Horizonte: Biblioteca da PUC Minas, 2014.
INSTITUTO DE PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL DE MINAS GERAIS (IPSM-MG). Cine Cien. Belo Horizonte, 2020. Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/cien Acesso em 17 março 2021.
MILLER, Judith. XIX EBCF Mulheres de Hoje. Entrevista concedida à Marcelo Veras, 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=dIhG61dcNJc> Acesso em 17 março 2021.
SANTIAGO, Ana Lydia. Emissão Especial In Memorian – Judith Miller. Rádio Lacan, 2018. Disponível em: https://radiolacan.com/pt/podcast/emissao-especial-in-memoriam-homenagem-a-judith-miller Acesso em 17 março 2021.
SANTIAGO, Ana Lydia. Homenagem à Judith Miller. Correio Express: Belo Horizonte, 2017. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/001/HomenagemJM_AnaLydia.html Acesso em 17 março 2021.