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A vida civilizada e o coronavírus

Não é possível evocar a atualidade cheia de riscos e mortífera, provocada pela pandemia do Coronavírus, sem considerar a crise e os impasses atuais da vida civilizada, ocasionados pela presença impactante e maciça da ciência. É o discurso da ciência que, desde a idade clássica, fixa o sentido do real para nossa civilização. No entanto – eis, então, o paradoxo com o qual nos defrontamos –, é por meio da própria ciência, com sua racionalidade aplicada à administração dos seres e das coisas, e, portanto, de suas práticas e instrumentos técnicos dos mais sofisticados, que se busca implementar soluções para a crise atual. Como tratar esse momento de crise aguda da vida civilizada que o vírus nos impõe? Para isso, não se trata apenas de conceber o nascimento e a sua natureza causal interna.

Se esses impasses não se restringem ao acontecimento da virulência mortífera do vírus, é porque se associa a ele um conjunto de outros acontecimentos que configuram um mundo – nosso mundo presente –, e, por sua vez, há algo, nesse mundo, que se mostra extemporâneo ao funcionamento do que é o real. Como declara Lacan, a diferença entre o mundo e o real é a “diferença entre o que funciona e o que não funciona”. Se o que funciona, caminha e gira em círculos é o mundo, o real constitui-se, em seu eterno retorno, como um obstáculo a esse funcionamento. Ambas, ciência e psicanálise, acedem ao real pelo impossível próprio ao que não funciona no mundo. Porém, diz Lacan, o real da ciência é o do número enraizado na linguagem. Na psicanálise, acede-se ao real por um impossível muito singular, na medida em que este se incrusta na contingência, e não na necessidade própria do saber que se aloja no real.



Fonte:
https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/03/28/o-avesso-da-biopolitica-e-o-virus/  


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